sábado, 3 de dezembro de 2011

: crônicas daqui (2)


 Camarão e champanhe

Eu nunca gostei de champanhe e de frutos do mar. Mais especificamente de camarão. E já enfrentei diversos constrangimentos por causa disso. Lembro-me até hoje da cara de estranheza que uma tia fez. Certamente as sobrancelhas franzidas e a boca entre aberta, congelada, indicavam que pela primeira vez ela presenciava tal situação. “Como é possível?”, devia pensar, “como é possível que alguém não goste de comer camarão?” E eu, sem ter como dar maiores explicações, permaneci olhando para ela, esperando que dissesse alguma coisa. Mas a cara de espanto e as mãos, uma na panela de louça e a outra na concha cheia estacionada no ar, me fizeram dizer a única coisa que poderia ser dita. Por mais óbvia e estúpida que pareça falei “é que eu não gosto do gosto”. Mas isso foi suficiente apenas para que ela aumentasse sua cara de estranhamento, me deixando cada vez mais desconfortável por atrasar o jantar das outras pessoas que estavam à mesa. Porque quando se prepara um jantar em que será servido camarão, sequer existe a possibilidade de alguém não gostar.


Foi então que percebi que não só ela, mas todos na mesa me olhavam com desconfiança. Me senti como se tivesse dito que meu primeiro time era o Bangu ou que era fã do Cauby Peixoto, sei lá, porque essas são coisas que por mais que as pessoas saibam que exista elas não conhecem ninguém que seja assim. O ser humano é desse jeito, quando algo surpreende ele trava até que a cabeça consiga assimilar o que foi dito. É uma reação bem comum onde logo a pessoa volta ao normal. Mas não foi o que aconteceu. Talvez fosse mais fácil aceitar um sobrinho fantasiado de Cauby cantando o hino do Bangu do que um que não comia camarão


Minha tia continuou me encarando, agora com uma feição de quem foi ofendida, e soltando a travessa colocou uma das mãos na cintura e disse “então você não gosta do gosto, né?” No mesmo instante um tio mais velho emendou, dizendo “na minha época os tempos eram outros, mais difíceis, não existia essa opção de não gostar, o que colocava na mesa era pra comer”. Mas convenhamos, quem é que passa por tempos difíceis e come camarão? Não consigo imaginar um pai de família chegando em casa de olhos triste e dizer para sua mulher e seis filhos “sinto muito gente, hoje só vai ter camarão”.


Notei que a situação começava a gerar um certo desconforto em todos na mesa, e eu me sentia cada vez mais como se tivesse entrado numa igreja e desavisadamente lavado as mãos na água benta. Porque não querer comer camarão não soava como um desrespeito só ao jantar, mas sim a todo um estilo de vida, um cânone da classe média idealizado por todos. Afinal, quem é que não gosta de camarão? Pelo visto, todos menos eu. Parecia que eu estava desdenhando, como aqueles que compram um vinho de muitos reais e no primeiro gole fazem uma cara de decepção, dizendo “o tom deste amadeirado não está tão honesto”. Mas de maneira alguma esta era minha intenção, simplesmente não gostava de saborear aquela comida e ponto. Eu até pensei em falar que o sabor do camarão me fazia sentir lambendo o chão amadeirado de um barco de pesca. Mas não queria ser tão honesto. 


E então os olhares que antes tinham raiva, passaram a me comunicar “coitado, ele não sabe o que está dizendo”. E então, triste por notar que seria uma causa perdida e já quase aceitando o interior daquela concha ainda parada no ar, tive de repente uma ideia. Foi como se um raio percorresse todo meu corpo, uma ideia tão boa que parecia ter sido sussurrada em meu ouvido por algum espírito recheado de marshmellow. E assim, mais ágil que siri em beira de praia disse “é porque eu tenho alergia!”. “Rá!”, pensei. Nesse momento foi como se da minha boca tivessem saído palavras mágicas, como se eu tivesse professado um poderoso encantamento. Todos soltaram um profundo e aliviado “ahhhhh” e logo toda a nuvem de maresia negra da tensão se dissipou. “Por que não falou logo?”, uma exclamou, “eu já tava achando que você não gostava mesmo”, disse outro me cutucando enquanto ria, “deve ser um sofrimento viver desta maneira”, comentou outra em consternação. E, finalmente, o jantar voltou a fluir normalmente e todos ficaram felizes de me verem comendo um prato só de arroz com batatas. Mas foi então que inesperadamente me ofereceram uma taça de champanhe. Travei. Hesitei por alguns instantes até que disse, “não, obrigado, é que eu... eu... eu tenho alergia”.

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